Leonardo de Magalhaens
Em nosso ciclo de ensaios sobre a Democracia e as várias esferas da vida social, com seus progressos e deficiências, é de se pensar se o “ideal democrático” não seria tão-somente outra ideologia, outra forma de “engodo retórico” para os demagogos à disposição. Mas precisamos entender o que seja “ideologia”.
Constituída por um conjunto de idéias, que totalizam uma visão de mundo (“Weltanschauung”), a Ideologia pode ser o fiel retrato das representações e aspirações de uma classe, como também um instrumento de manipulação (doutrinação dogmática), através de uma “propaganda ideológica”. Assim, de uma “teoria das idéias” pode-se derivar uma “legitimação pelas idéias”, onde as representações tornam-se mais ‘fortes’ que a realidade. Na verdade, a Ideologia acaba por se distanciar da realidade. Assim, Marx, quando defende que as idéias nascem da estrutura social, define a ideologia como um conjunto de “abstrações das relações de produção”.
Karl Mannheim, sociólogo alemão, em sua obra de 1930, “Ideologia e Utopia”, reafirma Marx ao esclarecer que “foi a teoria marxista que primeiramente concretizou a fusão das concepções particular e total de ideologia. Foi esta teoria a que primeiro concedeu a devida ênfase ao papel da posição e dos interesses de classe no pensamento.” Assim, a ideologia torna-se sinônimo d “falsa consciência” (falsches Bewusstsein), onde o burguês pensa como burguês, e o proletário pensa igual todo proletário, e cada classe tenta vender sua concepção de mundo para a outra classe: o burguês hegemônico controla as demais, e o proletário quer reunir os demais na “revolução proletária” contra o burguês. (Obviamente que o marxismo de crítica à ideologia, tornou-se também ideologia!)
Daí a “questão epistemológica”: qual a base da criação de idéias? Qual a classe social do pensador? Em que meio social a idéia é encarada como ‘verdade’? (pois uma ‘verdade’ para o burguês não será ‘verdade’ para o proletário, e vice-versa) Pois se as idéias nascem do contexto social, elas mudam quando ocorrem mudanças da conduta humana, seja econômica ou politicamente. A idéia é, portanto, mutável, sempre dependente dos objetivos da vida cultural. Afinal, é isso que Marx quer dizer com “a existência social é que determina a consciência” (em sua “Uma Contribuição à Crítica da Política Econômica”, analisada por Jean-Paul Sartre em “Crítica da Razão Dialética”, onde aborda os limites do Marxismo enquanto ‘ideia’ e ‘ideologia’.)
Mas quando é que as idéias se tornam ‘ideológicas’? Segundo Mannheim, é quando elas se distanciam da realidade, pois o julgamento da ‘ideologia’ (e da ‘utopia’) é diante do QUE É, do contexto atual do que julgamos “realidade”. “O conhecimento é distorcido e ideológico quando deixa de levar em conta as novas realidades ao se aplicar uma situação, e quando tenta ocultá-las o refleti-las com categorias impróprias.”(em “Ideologia e Utopia”) Assim, diferenciando “ideologia” de “práxis”, pode-se dizer que “ideologia” são idéias sem possibilidade de prática social, ou doutrinas (segundo Napoleão, que atacava assim aqueles que se opunham ao seu Império), onde dizer que o discurso do outro é “ideológico” é dizer que o pensamento dele é “irrealístico”.
No mais, uma realidade que depende muito da “posição social do observador”, a determinar sua “visão de mundo” (ou “concepção de mundo”) e sua “consciência de classe”, onde cada “grupo social” quer conservar sua visão (e seus interesses) e se esforçando para estender sua visão aos demais grupos, e se possível moldá-los segundo essa visão, através de uma “pedagogia política”, que não passa de uma “propaganda ideológica”, mais ou menos totalitária (dependendo do ‘aparelho estatal’ e do regime político, se mais inclinado a uma ditadura) (nota 1)
Para se situar o que seja “democracia” diante de um “conjunto de idéias”, façamos aqui um resumo da definição (segundo leituras de “esquerda” e de “direita”), onde “democracia” seria um regime político no qual a soberania popular tem voz ativa para tomar decisões básicas importantes sobre as questões essenciais das políticas de bem-estar social (não exatamente “Welfare State”, pois até os fascismos se preocupavam com “bem-estar social”) Assim o “direito básico” do povo (a vontade popular) é tomar decisões – diretamente ou através de representantes eleitos.
Uma bela definição. Mas então surge o problema da “decisão coletiva”, que seria a combinação das variadas decisões através de um diálogo público (nas Câmaras, nas Assembléias, no Parlamento) e decididas, se não por unanimidade, pelo menos pela “maioria dos votos”. Daí o “domínio da maioria”, o maior número de preferências (uma vez que é difícil a ‘unanimidade’ numa pluralidade de “visões de mundo” e interesses de classe). E numa votação favorável à maioria, a minoria deve ser tolerada (podendo até originar uma “oposição”) e aceita para novos debates e possível conciliação. (O que não ocorre nos “totalitarismos”, onde os opositores são eliminados, enquanto partido e enquanto pessoas.)
O diálogo e a tolerância são dois pilares. O terceiro é a “igualdade”, no enunciado “Um homem, um voto”, onde cada indivíduo com um voto de valor igual. Não importa a classe, a renda ou o credo, mas o valor do voto no processo eleitoral (desde que não se observe fraude). Antes somente os homens de renda votavam, estando as mulheres e os pobres fora do processo. Uma “democracia” ao velho estilo ateniense, diga-se. Mas as participações das feministas (as sufragistas) e dos proletários pressionaram a uma maior representatividade na vida pública.
Se igualdade é um dos pilares do regime democrático, é de se pensar se a desigualdade não seria uma ameaça. Ainda que “igualdade social” seja promessa socialista, enquanto a democracia representativa aceita a pluralidade de renda e status. A “democracia socialista” seria um “ideal”, não uma realidade. E não sabemos ainda como alcançar tal ideal (talvez assim permaneça, justamente por ser ‘ideal’)
“Democracia socialista” é pleonasmo? “Democracia liberal” é contradição em termos? Se o socialismo for o aprimoramento da democracia, sem qualquer ‘processo revolucionário’ (que sempre é seguido por reacionarismos e resvala para autoritarismos), se o socialismo nasce das perfeitas instituições democráticas, então “democracia socialista” é pleonasmo, no sentido de que a democracia plena é a aquela em que a “igualdade de renda” se aproxima da “igualdade de voto”. O verdadeiro socialismo, por sua vez, precisa ser democrático, pois a desigualdade de renda precisa ser combatida para não se renovar uma concentração de renda, o que inviabiliza a democracia, onde uns manipulam mais que outros, devido à possibilidade de acesso aos meios de comunicação (mídia) e exercem pressão financeira. (nota 2)
Na democracia representativa, o “representante” (vereador, deputado, senador) fala em nome da ‘base eleitoral’ que o elegeu, não em seu nome (na “teoria democrática radical”, de Thomas Jefferson, etc) Assim o tom arbitrário dos atuais representantes destoa muito do ideal de vontade popular, estando os representantes distanciados de seus eleitores, e propondo leis das quais se dizem ‘donos’, como se o importante fosse inventar leis e mais leis, e não o que o povo deseja (“Leis demais e uma Constituição idealista não enche a barriga de ninguém”, um colunista já ironizou) Por outro lado, as democracias ditas “populares” caíram nas mãos de demagogos e ditadores que não hesitaram em criar ditaduras do “partido único”, dizendo agir assim em nome do povo (vide os ‘direitistas’, fascistas, etc, e também os ‘esquerdistas’, com Mão, Pol Pot, Ceaucescu, etc)
Contudo, em pleno “multipartidarismo” com a pluralidade de opiniões e interesses (o partido depende das bases eleitorais, sua legitimação depende do grau de comunicação com as mesmas e o nível de ‘aprovação’), ocorre uma perda de legitimidade,o que permite uma ampla manobra demagógica, onde tudo é ‘em nome do povo’, e nada de consultar esse mesmo ‘povo’. (nota 3) E todos se dizem plenos democratas! Até os religiosos se dizem democratas e até obviamente os fascistas do século 21 virão dizendo-se “democratas”. É o que se constitui um “totalitarismo retórico do discurso democrático” (vide Chomsky, Bobbio, Kurz, Zizek, etc) onde a democracia não passa de mais um discurso disponível no mercado.
Culpa da “democracia liberal”? Afinal, temos mercado livre, livre expressão, liberdade de associação, imprensa livre, Estado laico, liberdade religiosa, tudo isso, mas sem real “democracia econômica”, onde as disparidades de renda e poder financeiro faz com que ‘os de cima’ mandem e ‘os de baixo’ obedeçam. Como a “propaganda é a alma do negócio” (e sabemos disso desde Goebbels!) e “é melhor dizer que fez do que fazer” (algo de Machiavelli?), a “democracia liberal” tornou-se mero ‘slogan’, uma bonita ‘palavra de ordem’, tipo “lutar pela democracia” ou “morrer pela democracia” ou ainda “a superioridade da democracia”, mas sem perguntar qual democracia! E sem planejar como vamos construir essa “democracia”! e dizem que já estamos exportando a democracia (digo, o Ocidente), quando os Estados Unidos invadem nações para “exportar a democracia”, assim na Coréia, na Indochina, no Haiti, no Afeganistão, no Iraque, e, futuramente, no Iran), como se a democracia fosse um produto com receituário, a ser aplicado em qualquer lugar, sem analisar o contexto sócio-econômico! (nota 4)
O problema da democracia é o excesso de promessas. Dizer que vai resolver tudo e trazer paz e liberdade. Mero discurso. A democracia não deve ser baseada na “liberdade” ou na “felicidade”. Pois ‘liberdade’ não existe (“ou todo mundo é livre ou ninguém é livre”, segundo Bakhunin)(*), assim erguer a liberdade como estandarte é encenar outra propaganda ideológica (sem suásticas ou foices-e-martelos). E a felicidade? Promessas impossível, uma vez que somos insaciáveis, insatisfeitos por condição existencial (segundo Freud e Sartre), e felicidade não passa de promessa para as peças publicitárias (sempre inventando novas necessidades, para que o consumo se perpetue ad aeternum)
(*) citação correta: “Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre”
A democracia deve basear-se no diálogo, na representatividade e na tolerância, pois sem pilares surgem fissuras para a discriminação e o autoritarismo, torna-se paraísos dos demagogos, com um acúmulo de promessas não-cumpridas a gerar frustrações, a perder a legitimidade junto às bases eleitorais, que não hesitarão em entregarem o poder a um grupo de ‘salvadores da pátria’. (Alguns acham mais cômodo – e mais barato – manter uma ‘família real’, contudo é retrocesso. A divisão de Poderes, os custos do Parlamento, as viagens do Executivo, tudo constitui o elevado preço a se pagar pelo equilíbrio instável da democracia.)
Se a demagogia atira a democracia nas garras dos autoritarismos, a luta por hegemonia arrasa a legitimidade, quando os Estados passam a pressionar (e controlar) seus cidadãos, como uma “guerra fria” constante. É definido quem pode se pronunciar, e quem pode protestar, num jogo de cartas marcadas onde a ‘revolta’ já está no enredo, onde em nada poderá abalar o poder constituído, mas, ao contrário, o fortalecendo mais, em nome da ‘segurança nacional’, do bem-estar futuro, em que um neo-nacionalismo (em plena era de globalização) não hesita em resvalar para um ‘xenofobismo’. (nota 5)
Tendo em mente a complexidade do tema, este ensaio (e todos os outros) deseja apenas uma olhada os progressos e deficiências do viver democrático. Do mundo democrático que é preferível ao ‘autoritarismo sutil’ no qual vivemos. Democracia não existe, está sendo construída (e se quisermos construí-la). E é de se pensar, se a democracia, o “menos pior dos sistemas políticos”, segundo Churchill, ainda nem se estruturou, o que esperar de sistemas ideais, idealistas e utópicos, como são exemplos o comunismo e o anarquismo?
fev/mar/08
Leonardo de Magalhaens
Notas
(1) “O termo ‘ideologia’ aparece pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt de Tracy, ‘Élément d’ideologie’ (Elementos de ideologia). Juntamente com o médico Cabanis, com De Gérand e Volney, Destutt de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das idéias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. (...)”
“Os ideólogos franceses eram antiteológicos, antimetafísicos e antimonárquicos. Pertenciam ao partido liberal e esperavam que o progresso das ciências experimentais, baseadas exclusivamente na observação, na análise e síntese dos dados observados, pudesse levar a uma nova pedagogia e uma nova moral. (...)”
“O sentido pejorativo dos termos ‘ideologia’ e ‘ideólogos’ veio de uma declaração de Napoleão no Conselho de Estado em 1812 [onde] Bonaparte invertia a imagem que os ideólogos tinham de si mesmos: eles, que se consideravam materialistas, realistas e antimetafísicos, foram chamados de ‘tenebrosos metafísicos’, ignorantes do realismo político, que adapta as leis ao coração humano e às lições da história.”
“Marx conservará o significado napoleônico do termo: o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as idéias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição,pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua relação real com o real.”
“Mas Comte usa o termo num sentido próprio ao original, ‘conjunto de idéias de uma época’, o poder deriva do saber.”
Fonte: “O que é ideologia”, 1980, de Marilena Chauí, Editora Brasiliense.
(2) O socialismo enquanto evolução do igualitarismo diante da lei (nos regimes democráticos) rumo a um igualitarismo econômico. É possível. Os regimes ditos ‘socialistas’ que existiram não passaram de tentativas de “capitalismo de Estado”. A Rússia conhecia a democracia? E a China? E Cuba? Segundo Mannheim, um “socialismo germânico”, caso os ‘comunistas’ subissem ao poder em 1919, seria muito próximo de um socialismo bolchevique (russo), pois ambos seriam burocratizados e centralizados, ou seja, nem seriam “socialismos”, seriam mais “estatismos”.
(*)o problema 'ideológico' do termo (rótulo) 'socialista'. Pois os comunistas se dizem 'socialistas', mas nem todo socialista é comunista, e também muitos anarquistas se dizem 'socialistas', mas nem todo socialista é anarquista. A luta é comum quando se combate o capitalismo e o autoritarismo, mas se divide quanto a existência do Estado, da 'ditadura do proletariado', da autogestão e socialização dos meios de produção.
(3) Segundo palavras de Norberto Bobbio, “A Demagogia não é propriamente uma forma de Governo não constitui um regime político, é, porém, uma praxe política que se apóia na base das massas, secundando e estimulando suas aspirações irracionais e elementares, desviando-a da sua real e consciente participação ativa na vida política.”
(4) O problema da representatividade nas eleições norte-americanas não é novidade. Todos sabem que é um jogo de cartas marcadas entre dois partidos majoritários – o Democrata e o Republicano – que pouco se diferenciam. O mesmo que ocorria na Grã-Bretanha, com os Conservadores (tories) e os Liberais (whigs), até a ascensão dos Trabalhistas. O problema seria o “voto facultativo”? Novos paridos e candidatos não conseguem subir por falta de eleitores não arregimentados pela mídia? Então se vota entre os conservadores de direita e os conservadores de centro (o mesmo drama da França e da Itália, onde a Esquerda se articula ora com um bloco ora com outro), enquanto em outros países multipartidaristas, os vários setores se mostram em plena combatividade em busca de eleitores, em alternância de poder, em coligações e fusões de gabinetes, promessas de cargos ministeriais, etc), como são exemplos o Brasil, a Argentina, a Alemanha, etc.
(5) As democracias venceram os fascismos na II Guerra Mundial. Certo? Mas usando métodos de fascismo! Ainda que o maior mérito de Churchill tenha sido o de manter a ‘democracia representativa’ durante a crise da Guerra (tanto que ele nem foi reeleito!), o mundo democrático nunca foi o mesmo. As ‘áreas de influência’ da nova hegemonia pós-guerra não possibilitaram mais uma real democracia, em tempos de “Guerra Fria”. Hitler, com seu III Reich, destruiu o resto de comunismo na URSS e a possibilidade de plena democracia nos EUA, pois para sufocar os fascismos, os governos aliados passaram a usar ‘métodos fascistas’, com governos centralizados, com sindicalismo atrelado, uma polícia secreta atuante, uma corrida armamentista, uma censura de informações, um controle das críticas, uma caça ao inimigo do Estado, ou seja, todo um receituário que Hitler (e Stálin) nunca hesitou em usar. E Hitler, em plena derrota, considerava o novo Tzar Stálin o modelo de “nacional-socialista”, o nacionalismo com sua máscara de bem-estar social.
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